terça-feira, abril 03, 2012

comboio

Estou no comboio. Regresso a casa. Venho de mais uma entrevista na capital. E assim desperdicei, em mais uma futura rejeição, mais um dia da minha vida. Tenho, pelo menos, mais uma hora de viagem para aguentar. A carruagem em que sigo leva um número considerável de pessoas. Eu estou numa das extremidades, sozinho em dois lugares. Na outra janela vai uma senhora a jogar sudoku. À minha frente vão homens, mulheres, adultos, idosos e também aquelas coisas pequenas. Encosto me à janela e começo a sonhar acordado. Tal como acontece quando durmo, sei que não me vou lembrar do que vou imaginando enquanto olho a paisagem. Estou extremamente cansado mas não quero adormecer, não vá acordar já depois da minha paragem. O meu descanso é, no entanto, interrompido por barulho. Alguém grita na outra extremidade da carruagem. Mais gritos, a maioria agudos. Passo para o outro lugar para olhar o corredor e ver o que se passa, e o que se passa é o seguinte. Um homem e uma mulher estão em pé no meio do corredor. O homem segura a mulher (mais correcto será dizer a rapariga porque não tem mais do que 22 anos) pelo peito enquanto lhe encosta uma arma de fogo à cabeça. Não sei especificar que arma é. Sei que é uma pistola (e não um revólver) e que é preta. Mas não sei a sua marca ou o seu modelo. A mulher (a que tem uma pistola preta encostada à cabeleira loira) está apavorada, com os olhos fechado, pernas a tremer. Ninguém se mexe, está toda a gente assustada, sentados nos seus lugares, algumas seguram, contra os peitos, as suas crianças. Ao meu lado a senhora parou de fazer o sudoku. Ouvem-se, no meio dos gritos, uns “por favor não faça isso”, “ai meu Deus” ou “minha nossa senhora”. O indivíduo com a arma na mão declara em voz alta:

- Hoje resolvi acabar com a minha vida, mas não vou partir sozinho, antes de dar um tiro na minha própria cabeça vou dar tiros em algumas das vossas, e vou começar por ti (dirigindo-se à apavorada rapariga que segurava pelo peito e que não parava de tremer).

“Não faça uma coisa dessas”, “Porquê”, “Ai Jesus”, “ Não, por favor não”, “Eu tenho três filhos em casa”, “Eu tenho quatro”. É o que consigo perceber com tanto grito e choro de crianças. Todos continuam sentados, ninguém se levanta. Provavelmente estão a fazer contas. Quais serão as probabilidades de sobreviver se não me mexer? Certamente serão maiores do que se me armar em herói. Estarão todos a pensar neles próprios. Provavelmente aquela rapariga tinha vindo sozinha. Nenhum namorado ou colega que a defendesse. Olho para a rapariga que continua com os olhos fechados. Parece bonita, mesmo apavorada. Olho para o corpo e as suas curvas enchem me de coragem. Penso para mim, “vou me armar em herói, a minha vida está uma merda e está”. Somos homens ou somos ratos? Levanto me e avanço pelo corredor até que o maníaco armado repara em mim. A rapariga continua com os olhos fechados. Sentados, à minha volta, os passageiros olham para mim admirados e aliviados (outro desgraçado se chegou à frente). Olho o meu adversário nos olhos e digo (sem gaguejar, bem melhor do que estive na minha última entrevista de emprego):

- Ouve lá meu bandalho, matares em primeiro uma mulher... Mas tu não tens vergonha na cara?

- Como assim? Qual é o problema de matar em primeiro uma mulher? Por acaso há alguma regra de conduta para estes casos? Parece-me a mim que não dizes coisa com coisa – Pergunta o assassino/suicida wannabe.

Fico um pouco aliviado de ele não ter levado a mal que eu o tenha chamado de bandalho e contínuo – Como assim? Parece-me completamente desprezível que comeces por uma mulher.

- Mas afinal quem és tu para estares a dar palpites sobre a pessoa que devo matar primeiro? Estás a oferecer-te para morreres no lugar dela? Mas quem julgas tu que és? Mas quem és tu para me julgar? Porque razão haveria eu de ter que começar por um homem e não por uma mulher? Que diferença faz?

Com esta o gajo lixou-me. Eu não quero parecer machista. De facto não me ocorria nada lógico para justificar a escolha de um homem em detrimento de uma mulher. Seria até mesmo, imagino, uma desonra para uma feminista não começarem por ela. Não me lembrava de nada melhor para dizer – Mas tu não viste o Titanic? Quando há acidentes salva-se primeiro as mulheres e as crianças. Presumo que o mesmo funcione ao contrário. Se salvam primeiro as mulheres, parece-me a mim natural que se matem primeiro os homens.

- Nunca vi o Titanic.

- Epá. Mas percebeste a ideia? Eu no fundo também não percebo a razão para que se proceda dessa forma. Até porque me parece que os homens são muito mais úteis à sociedade.

Entretanto a rapariga ameaçada pelo louco abriu os olhos, olhava para mim. Era mesmo bonita. Tinha de facto feito uma boa acção. Estava mesmo orgulhoso de mim próprio.

- Por quem devo então eu começar? Devo matar em primeiro um homem? Um idoso? Devo matar-te a ti em primeiro?

- Honestamente eu preferia que não me matasses a mim mas também não consigo dizer quem devas matar, simplesmente acho que não deves começar por essa rapariga, ao menos escolhe uma menos bonita.

- Tu achas esta bonita? Não a acho nada de especial. Havias de ver a minha última namorada.

- Estava a brincar. A beleza não é importante. Não mates primeiro as mulheres, começa pelos homens.

- Não quero. Quero começar pelas mulheres. Se queres fazer de maneira diferente arranja tu uma pistola e entra noutro comboio ou vai para outra carruagem.

Passei-me com esta arrogância. Aproximei-me dele, agarrei a arma e afastei-a da rapariga, que entretanto estava solta e livre para fugir porque o seu carrasco se tinha concentrado apenas em mim. Estávamos agora os dois embrulhados, um ou dois tiros para o ar e lá fomos os dois para o chão. Consegui tirar a pistola e aproveitei para dar com ela, com toda a força que tinha, no nariz do meu rival que se amolgou como plasticina. Mais umas cacetadas para ter a certeza de que não se volta a levantar tão cedo. Sujei a camisa de sangue, o que, digamos a verdade, disfarçava completamente as nódoas que tinha feito ao almoço (tinha muito molho).
Levanto-me, os passageiros à minha volta, aliviados, batem palmas e rejubilam com o meu feito. “É assim mesmo”, “Graças a Deus”, “Eu já estava mesmo para me levantar também”, "Um verdadeiro herói". Olho para eles, levanto a arma, dou mais um tiro para o tecto e grito – PRIMEIRO OS HOMENS E AS CRIANÇAS!